A obsessão de se perdurar. Ela podia ser um argumento, se não o é, em favor da imortalidade do homem. Já não falo dos que “da lei da morte se vão libertando” por obras, feitos militares ou desportivos, e o mais assim, que é já um processo provado desde sempre. Falo por exemplos dos maníacos que dispuseram as coisas para serem congelados depois de mortos e serem ressuscitados depois de descoberto o remédio para a doença de que morriam. Falo dos que gravam o nome nas árvores, nos monumentos, no interior das retretes públicas, normalmente nomes jamais identificáveis mas que julgam agradável escrever para serem lidos mesmo por quem não os identifique. Falo de todos os processos dos mais altos aos mais ridículos, que todos são ridículos no silêncio e na escuridão da morte. Mas acontece que a tecnologia nos permite guardarmos espontaneamente uma massa enorme de registos dos que passaram. São não só os livros que foram registo desde há muito, mas guardam apenas o indefinível e a impessoalidade, para lá do que da pessoalidade neles se pode deduzir, mas ainda e sobretudo os registos mais modernos como filmes, discos, fitas gravadas, vídeos. Decerto seria interessante ouvirmos hoje a voz de Camões e sobretudo vê-lo da sua realidade de pessoa. Mas que será o montão desses registos daqui a cem, a quinhentos anos? A população mundial aumenta assustadoramente. Ela é já de quatro ou cinco biliões e admite-se que duplique até ao fim do século. Se não se escoam os excedentes para Marte ou outro planeta, vamos andar aos empurrões uns aos outros. Junte-se agora a excesso de material humano a montanha de registos de toda a espécie e o formigueiro aumenta extraordinariamente. Mas pior de tudo deve ser a confusão de vidas já mortas e todavia vivas a atropelar-nos ainda mais. Porque nunca mais se morrerá de todo. Ora, a morte, como todas as leis da vida, são para se cumprirem. E se o suicídio não for obrigatório após certo limite, que seja ao menos obrigatória a morte daqueles que já morreram. Nós só temos História de há poucos milénios. O resto é silêncio. E é porque é silêncio, que não fazemos ainda ideia do barulho que vai ser. E o destino do universo é o silêncio absoluto.»
Vergílio Ferreira, Conta-corrente, vol. IV, p.339
O que pensar, hoje, das palavras de Vergílio Ferreira? Qual o sentido deste texto na atual sociedade da informação?
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