Daniel Sampaio (n. 1946) é um psiquiatra e escritor português. |
Conhece crianças afluentes? Se desconhece o significado deste conceito,
então leia a seguinte crónica do Psiquiatra Daniel Sampaio (Pública, 5 de
fevereiro de 2012). Se, após a leitura desta crónica, tudo isto lhe parecer
estranhamente familiar, então prepare-se para agir...
«As crianças afluentes são
abundantes em tudo: falam muito, exigem demasiado, manifestam os seus pontos de
vista com excessiva exuberância. Há muito deixaram de se preocupar com os
outros e permanecem centradas em si mesmas. O seu quotidiano é preenchido por
movimentos constantes de birras, protestos ou tentativas de sedução, conforme
as circunstâncias do momento. O seu discurso é caudaloso, quer em casa quer na
escola, como se não pudessem existir, um só momento, fora do trono que ocupam.
Durante alguns minutos por dia, são capazes de ficar em silêncio, curvadas
sobre si próprias: nessa altura, pais e professores suspiram de alívio, mas é
apenas o descanso do guerreiro. De repente tudo volta ao ponto de partida e a
profusão regressa, como se aquelas tréguas só pudessem ser de curta duração.
Observemos o seu quotidiano.
Imaginemos uma dessas crianças: rapaz, onze anos, 6º ano de escolaridade, um
irmão mais novo. Quando é acordado pela mãe para ir para a escola, logo começa
a protestar porque é cedo e está frio. Em regra não toma o pequeno-almoço, toda
a família já se atrasou com o protesto inicial e o menino agora embirra com o
leite matinal. Chega à escola e não fala às auxiliares, mas não hesita em gozar
um colega mais frágil ou em desafiar a professora, sobretudo se não for logo
gratificado com uma atenção privilegiada. A afronta pode ser uma recusa de
resposta, olhos para baixo e braços cruzados com força, ou aparecer sob forma
disfarçada, através de uma série interminável de perguntas, para as quais há
muito conhece as soluções. Nos testes, olha para o colega do lado para
espreitar as respostas, estuda pouco mas quanto baste para não reprovar.
Chega o primeiro intervalo.
Irritado e cheio de forme, abranda a sua fúria numa bola de Berlim com creme,
ou num donut ressequido do bar da escola. Não dispensa uma piada a que o receia
e é hábil nas graças às raparigas. De regresso às aulas, é o momento de armar
em líder da turma e protestar quando a professora tentar impor a disciplina.
Almoça longe do refeitório, isso
é para os chungas. Prefere comer no café mais próximo, a exigência diária de
dinheiro aos pais permite-lhe escolher a ementa. De tarde, está sonolento nas
aulas, olha com ar de desafio em seu redor, não toma nota dos trabalhos de casa.
Vai ao judo com a mãe, que
aparece a correr deixando o trabalho a meio. Aplica-se pouco, a sua cabeça está
no centro comercial onde a seguir vai exigir T-shirt e pólo de marca, ténis à
moda ou mais um jogo para a PlayStation. No carro de regresso a casa, protesta
uma vez mais: a T-shirt é de uma cor que não aprecia, faltou comprar mais um
par de calças.
Os trabalhos de casa são feitos a
correr, em alternativa exige à mãe uma justificação para a professora se não os
faz. Ignora a chegada do pai, pois desde há muito está no Facebook ou a lançar
tiros em jogos de computador. Janta em tabuleiro uma fatia de pizza, de volta
aos jogos não aceita ir para a cama à hora supostamente combinada. No quarto tem televisão, computador e a amiga PlayStation, quanto mais tarde fechar a luz, mais vencedor se sentirá.
No dia seguinte, tudo recomeça:
uma série caudalosa de exigência, raiva descontrolada e retaliação para quem
ouse opor-se. Os pais, desesperados, consultam um psicólogo que o ouve com
atenção mas que, muitas vezes, lhe reforça a omnipotência.
Estas crianças afluentes esquecem
que a sociedade já não é afluente. O cibercapital inundou todos numa torrente
de escassez financeira e penúria emocional. Aos meninos afluentes tudo foi dado
ou prometido, porque os pais e avós deixaram que fossem os mais novos a mandar
na família, em vez de ser a família a organizar o quotidiano das crianças.»
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