Col Tempo, Giorgione (1477-1510) |
«Mas a obra realizada pelo artista
deverá ser sempre “bela”, no sentido de “bonita”, quer dizer, o contrário de “feia”?
Tem de se basear explicitamente na harmonia e equilíbrio entre as partes, na
perfeição do conjunto, ou poderá colher também o dissonante e até o disforme? A
santíssima trindade platónica é constituída pelo Bem, pela Verdade e pela
Beleza e pertence a uma ordem ideal para lá deste mundo, mas a tríade infernal
que parece, em contrapartida, presidir aos nossos conflitos terrenos é
constituída pelo Mal, pelo Falso e pelo Feio. Será obrigação do artista aspirar
apenas a mostrar-se devoto da primeira trindade, ou também inclui na sua tarefa
dar-se conta e dar-nos conta da segunda? Tomemos por exemplo o caso de
Giorgione, um dos pintores mais sublimes do Renascimento italiano. Reproduziu
muitas vezes a beleza de figuras humanas graciosas, mas, no entanto, também pintou
o retrato implacavelmente fiel de uma velha desdentada e decrépita que devia
ter sido bonita na sua mocidade, porque o quadro se intitula Col Tempo (“Com o
tempo”). Não é um quadro que represente a beleza mas antes o que o tempo
costuma fazer à beleza. E a velha assim representada não é “bela” sob nenhum
ponto de vista, nem sequer a destrutiva passagem dos anos que a reduziu a tão
triste estado físico tem nada de bonito ou de harmonioso. Traiu então Giorgione
o seu compromisso artístico com a “beleza” pintando algo que quase produz em
nós repulsa e que pode levantar negros temores se refletirmos sobre isso?
Contudo, atrever-me-ia a dizer que o quadro é artisticamente “belo”, mesmo
infinitamente mais belo que muitas reproduções tópicas de paisagens adocicadas
ou de alguma Miss universo na flor da idade. Porquê?»
Fernando Savater, As perguntas da Vida, p. 233
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