quarta-feira, 9 de maio de 2012

"Belo é o que nos faz parar"

Col Tempo, Giorgione (1477-1510)
«Mas a obra realizada pelo artista deverá ser sempre “bela”, no sentido de “bonita”, quer dizer, o contrário de “feia”? Tem de se basear explicitamente na harmonia e equilíbrio entre as partes, na perfeição do conjunto, ou poderá colher também o dissonante e até o disforme? A santíssima trindade platónica é constituída pelo Bem, pela Verdade e pela Beleza e pertence a uma ordem ideal para lá deste mundo, mas a tríade infernal que parece, em contrapartida, presidir aos nossos conflitos terrenos é constituída pelo Mal, pelo Falso e pelo Feio. Será obrigação do artista aspirar apenas a mostrar-se devoto da primeira trindade, ou também inclui na sua tarefa dar-se conta e dar-nos conta da segunda? Tomemos por exemplo o caso de Giorgione, um dos pintores mais sublimes do Renascimento italiano. Reproduziu muitas vezes a beleza de figuras humanas graciosas, mas, no entanto, também pintou o retrato implacavelmente fiel de uma velha desdentada e decrépita que devia ter sido bonita na sua mocidade, porque o quadro se intitula Col Tempo (“Com o tempo”). Não é um quadro que represente a beleza mas antes o que o tempo costuma fazer à beleza. E a velha assim representada não é “bela” sob nenhum ponto de vista, nem sequer a destrutiva passagem dos anos que a reduziu a tão triste estado físico tem nada de bonito ou de harmonioso. Traiu então Giorgione o seu compromisso artístico com a “beleza” pintando algo que quase produz em nós repulsa e que pode levantar negros temores se refletirmos sobre isso? Contudo, atrever-me-ia a dizer que o quadro é artisticamente “belo”, mesmo infinitamente mais belo que muitas reproduções tópicas de paisagens adocicadas ou de alguma Miss universo na flor da idade. Porquê?»
Fernando Savater, As perguntas da Vida, p. 233 

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