CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O Velho
por Pedro Luso de Carvalho
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
nasceu em Itabira de Mato Dentro, interior de Minas Gerais, a 31 de
outubro de 1902. Deixou uma importante obra poética. Escreveu cronica
nos anos de 1954 a 1968, para o Jornal carioca, Correio da Manhã, com o
título geral de “Imagens”. Depois passou para o Jornal do Brasil, onde
manteve uma coluna no Caderno B.
Dizia que a crónica é o meio
de expressão que o colocava frente ao público; reconhecia, no entanto, o
caráter efémero e perecível do género; e dizia: “Crónicas eu faço
profissionalmente, poesias eu faço porque ninguém encomendou". No mês de
setembro de 1984, Drummond abandonou a crónica, para cuidar de sua vida
e para "ceder espaço aos mais jovens".
Segue a crónica de Carlos Drummond de Andrade, intitulada O velho (In Carlos Drummond de Andrade. Boca de Luar. São Paulo: Círculo do Livro, 1984, p. 64-67):
[ESPAÇO DA CRÓNICA]
O VELHO
(Drummond)
Vocês não acreditam, mas
também este cronista costuma ir ao Banco, e não só para pagar contas de
luz, gás, telefone. Vai conversar com o Gerente - um gerente simpático,
desses que não coçam a orelha quando a gente propõe uma reforma de
título. Mas quem sou eu para pleitear tamanha mercê? Procuro o Gerente
para conversar sobre amenidades, e ele me ouve com paciência e atenção.
Até me conta coisas de seu filho, o Escritor. O Escritor tem três anos e
escreve literalmente em todas as paredes da casa. Fareja livros com
gravuras e sem gravuras e aprende coisas que eu, possivelmente, ignoro. A
curiosidade intelectual do Escritor é insaciável. Assim fazemos do
Banco, sem prejuízo dos interesses bancários (pois o Gerente é uma fera
para trabalhar no meio das maiores apoquentações), um lugar de grato
repouso.
Ontem o gerente estava tão
assoberbado de clientes, papéis, telefonemas, recados, que não tive
coragem de me aproximar. Fiquei à espera na poltrona, ao lado de dois
rapazes que também esperavam. Esperavam e conversavam sobre política,
inflação, Copa do Mundo.
– E como vai teu velho?
– Meu velho? Respondeu o outro. – Aquele vai sempre bem. Melhor do que eu, você e todo mundo.
– Qual a última dele?
– Não tem última. Todas são
novas e contínuas. Aos sessent’anos – sessenta e lá vai fumaça – nada,
corre, entra em pelada, monta, joga vôlei e só não rema porque não
encontra companheiros com a mesma fibra, para disputar regata. Enquanto
isso, fuma e bebe.
– E... no resto?
– No resto ele é ainda de
goleada. Parece mentira, mas as mulheres adoram o Velho, e ele capricha
para dar conta do serviço.
– Quantas vezes ele já casou?
– Perdi a conta. Quatro ou
cinco, se não me engano. Ou seis. O extraordinário é que nenhuma das ex
se queixa dele, todas que conheço continuaram suas amigas e, de um modo
ou outro, dão a entender que o desempenho dele é cem por cento. Sabe de
uma coisa?
– Sei. Você tem inveja dele.
– Tenho. Pra que mentir? Meu primeiro casamento não deu certo, o segundo menos ainda. Então desisti, agora sou free-lancer. Mas com o Velho é diferente. Todos os casamentos funcionaram.
– Então, por que acabaram?
– O Velho tem uma teoria
que casamento não pode esfriar, vira rotina. Antes que isto aconteça,
ele passa uma conversa manhosa na gatona – é especialista em gatonas – e
o último episódio da novelinha é vivido sem choro nem briga. Um sábio.
– Um mestre.
– É como eu costumo
chamá-lo. Ele responde que não tirou diploma e que todo mundo se for
habilidoso, tira de letra. Tem dia que chego a me preocupar: “Mestre,
olha essas coronárias!” Ele ri, não dá confiança em responder. “Mestre,
não tem medo de negar fogo?” Aí então nem se dá ao trabalho de me olhar;
faz que não ouviu. O Nuno, meu irmão mais velho – irmão de pai e mãe,
do primeiro casamento -, fica besta de ver tanta resistência, e diz que o
Velho não existe, que nosso pai é Energia Cósmica em pessoa.
– E teus outros irmãos?
– Os outros? Deixe ver...
Somos quatorze irmãos, espalhados no mundo. Todos adoram o Velho, aliás o
Nuno também. Falei quatorze, mas só Deus sabe quantos haverá por aí,
desconhecidos da gente. Nem o Velho sabe.
– Algum de vocês puxou a ele na vitalidade?
– Uns fazem força, não creio
que consigam. Esse negócio não comporta imitação. Ou bem que o cara
nasceu com alegria de viver e gozar a vida, ou nasceu sem isso, e não
tem vitamina que ajude. Claro que sempre há margem para performances individuais
brilhantes, e o normal é a gente ser bem-sucedida – até certo ponto, o
ponto X. Mas o Velho excede a marcação. Nunca vi ninguém tão
identificado com o mundo, a mulher, as coisas agradáveis da vida. Sem
contar vantagem – isso é importante. Não se vangloria de nada. Vive
plenamente.
– Quer dizer que ele dá nó até em pingo d’água?
– Não faz outra coisa. Bem,
vou indo. Nosso amigo Gerente ainda não se desenvencilhou daquele cara, e
eu prefiro voltar depois.
– Espera mais um pouco.
– Não posso. Tenho de ir a um batizado.
– Essa não!
– O Velho está me esperando.
Me escolheu para padrinho do seu rebento mais novo. Tenho um irmãozinho
de dois meses, não te contei ainda? Ciao.