«Na mesa ao lado da de Manuel, outro homem. Era filho de pai incógnito. Ao longo dos tempos da sua meninice, sentiu-lhe a falta, sobretudo no dia do Pai. Queria acreditar que tudo não passava de um erro do funcionário do registo civil. Como se lhe tivessem posto mais uma letra no seu nome. E, na adolescência, queria ir à pesca com o pai, à semelhança dos seus amigos. Ou jogar futebol ou praticar um outro desporto qualquer.
Entretanto, mais crescido, procurou esquecer o assunto. Poderia pensar-se que estava conformado com a situação, mas o silêncio era apenas um modo de ignorar aquilo que o distinguia dos seus colegas e que, mesmo não contando a ninguém, lhe doía por dentro.
[...]
A lua ia alta. O homem, já na rua, dizia uma série de impropérios. Ninguém lhe conhecia família nem se sabia onde morava. Também já não se lembravam há quanto tempo começara a aparecer por ali. Manuel ouvia-o – um lamento, puro ganir, que havia de ecoar durante toda a noite, pelas ruas da cidade –, enquanto se afastava rumo a casa. Manuel seguia com um destino certo, ainda que em passo nada acelerado. O outro ia cambaleando, num percurso incerto, em estado de embriaguez tal, que ninguém se atreveria a falar-lhe nem sequer a responder aos seus comentários. Arrastava os pés, cordões à solta, sapatilhas gastas. Gasto ele também. Calças velhas, sujas, descaídas na cintura. E já nem bolsos tinham para guardar as moedas. Nem os sonhos. Também os não tinha já. “Para quê ilusões?”, perguntava tantas vezes. Não fazia mal, portanto.»
Cristina Barbosa
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